quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Uma rampa para Ulisses

Desde de Ulisses de James Joyce,  caiu a ficha que a vida do homem moderno é de uma mediocridade incomparável na maior parte do tempo - diferente antigos, nossa vida imaginária segue um roteiro bem menos emocionante do que o enfrentamento de deuses ou seres mitológicos: trabalhar, lidar com a burocracia, levar os filhos na escola, passar no banco ou ficar tomando chá de cadeira no médico não dá lá experiências muito eletrizantes.

Para alguns, a procura de um desafio preenche esse vazio e é muito comum o esporte ter um espaço nessa busca - embora, diga-se, poucos realmente desejam aventuras com riscos.

Recentemente vi um pequeno documentário sobre uma maratona, cuja parte final é na Serra do Rio do Rastro.

Pessoas correndo em uma Serra asfaltada dão caldo para uma experiência a ser compartilhada?

Bem, depende de quem corre ou põe a carne no pastel.

Corredores subindo uma ladeira em meio a chuva e ao vento com cenas ora variando entre quadros em branco e preto, ora coloridos, e muitas pitadas de slow motion para captar as expressões de sofrimento ou dar um tom cool as passadinhas curtas e esforçadas dos "guerreiros".

O problema é que as cenas, somente elas, não preenchem infindáveis trinta minutos e o pacote precisa das histórias dos corredores.

Na fala de alguns, a Serra ganha o status de personagem e vira “Montanha”  e cada passo para o topo representa um embate, uma conquista e a celebração de uma história pessoal que carrega uma lição de vida.

Na teoria....

Porque o que sai mesmo é uma farofa filosófica de coisas que não dão liga.

Um a um, vão se enfileirando clichês sobre "conhecer os seus limites", "humildade", "superação nos treinos", "metas e objetivos" e muito blá-blá-blá com pitadas de emoção escolhidas a dedo.

Um corredor  fala do extenso currículo de maratonas, ultramaratonas e, ao se referir aos amigos que conheceu ao longo dos anos, cai no choro.

Já no pórtico de chegada, outro fica aos prantos e diz que trocou o vício da drogas pelo vício da adrenalina, da serotonina e da corrida.

Mas esse é mais engraçado.

Arremata dizendo ter participado para se divertir - tanto que, temendo quebrar se acompanhasse o ritmo dos outros, preferiu largar atrás de todos os corredores.

O vídeo foca ele, humilde de tudo, fazendo exatamente isso.

Tá com pena?

O dito cujo chegou em terceiro entre 300.

Ele diz e repete com cara de espanto "Não acredito, não acredito...não acredito".

Pois é, nem eu.

Ao fim do documentário, não é apenas o roteiro salpicado que incomoda.

Queria saber por onde andam os motivos banais.

Ou isso por acaso não faz parte da nossa natureza?

Gostaria de ouvir respostas do tipo "Tô aqui para perder a barriga", "Curti a camisa e tem que fazer a prova para pegar uma", "Moro perto e não estava fazendo nada mesmo", "Aposta com os amigos, agora agora tô me F*&%$#@".....

"Por Nada..."

"Sei lá...."

Agora, claro, isso não vem da maioria dos corredores.

Não bastasse aquela subida do capeta, ainda são fustigados com perguntas sobre o que aquela experiência representa, quais ensinamentos se tiram de tanto sacrifício, o que significa romper os limites, o que alimenta a motivação....

Eu fico olhando e....sei, não.

A gente precisa de tanta coisa assim para correr?

É muita viagem achar que uma rampa gera uma Odisséia.

5 comentários:

simplifique disse...

lindo, perfeito.
hj, discutia algo parecido com meus amigos. nao muito parecido, mas envolvido nessa coisa poser.
va pra porra.
show de texto.
seus textos aqui sao fodasticos.

Claudia disse...

kkkkk
É isso aí. Não vi o tal documentário, mas dá pra imaginar o tom de auto-ajuda. Aquelas coisas que os ditos especialistas adoram mostrar em cursos de liderança como "motivacionais" ou "casos de superação". Clichês e banalidades travestidos de filosofia. Que tédio.

Anônimo disse...

Ótimo Vagner...Tbm acho isso!
Ah, uma correção: eles não são "guerreiros" são "ninjas"...rs

Unknown disse...

Deve ter tido alguém com algum comentário desses , mas ai não vende né Bessa , precisa ser Dramático , isso sim vende

. disse...

Tudo tem que ter "superação". Nada "porque sim". Pela zoeira. Isso aí é herança daquele modelo ridículo de programação televisiva edificante, em que até reality show sobre leilão de quinquilharia ou produção de cupcake tem dramas profundíssimos.
Tenho coração peludo, acho tudo brega e piegas.