terça-feira, 23 de abril de 2013

A Soma de Todos os Medos

Um assunto tanto corriqueiro que rola quando tenho a oportunidade de conversar com as pessoas nas provas diz respeito a apreensão em relação ao Iron.

Essa apreensão não tem uma definição muito clara, às vezes sendo colocada como medo, outras como ansiedade, mas geralmente uma angústia dificil de explicar.

O que é muito comum da nossa parte é tentar um approach otimista logo de cara: "não tenha medo", "não fique ansioso", "não fica isso", "não fica aquilo".

Somos criados dentro de certas convenções e achamos que fazemos bem as pessoas quando as incentivamos ou ressaltamos os pontos positivos em situações dificeis.

Amigos são assim. Mas deviam?

Sêneca diria que não.

Para ele essa postura poderia ser um remédio ruim contra a ansiedade, pois deixaria as pessoas despreparadas para o pior. Então o mais adequado seria dizer que o pior é possível, mas não tão ruim quanto nós o antecipamos na nossa imaginação.

Assim, ter uma atitude amiga e generosa de encorajamento...não funciona.

E, aqui entre nós, se tudo fosse uma questão de dizer as palavras certas.

Existem motivações profundas de ordem psicológica que explicam essas sensações e que não podemos controlar conscientemente. Para uma parte da psicologia evolucionista, nosso cérebro é espetacular, mas também é uma carcaça que ainda funciona a um passo anterior da evolução.

Por exemplo, ninguém tem medo das redes de auto-tensão, alimentos letais a longo prazo, fumar, dirigir a 180 km/hora, mas ainda persiste o medo irracional de aranhas, cobras ou outros animais que não convivem mais conosco, além daqueles que nem existem  - há muitos que não tem problemas para pegar uma arma de fogo na mão, mas tomam susto de dinossauros de brinquedo quando vão a um parque de diversões.

Há também o terror psicológico em que se embrulham todos os nossos medos desde de criança. São lembranças de personagens sobrenaturais ou simplesmente o medo do escuro e do desconhecido. Apesar de melhorar ao longo do tempo, em certos adultos isso persiste, tal qual aconteceu com uns e outros que assistiram "O Chamado" e depois ficaram com medo de olhar corredores vazios filmados em câmeras de vigilância eletrônica. ;-)

Há um teste interessante no youtube que mostra como se comportam alguns indivíduos em ambientes propícios para rememorar essas lembranças.

Eles caminham em um corredor escuro e estreito até lidarem com uma imagem que aparece repentinamente no final dele. Alguns correm, outros ficam estáticos e outros atacam.

O medo é assim: nos faz recuar, nos paralisa ou nos torna agressivos.

E a figura com a qual todos se assustavam era apenas da sua própria imagem projetada em um espelho.

No fundo, o que eu enrolo para dizer é que a angústia e ansiedade estão aí e nada se resolve dizendo "não tenha medo".

O que resolve é a coragem.

Coragem é uma "virtude" que mostra uma distinção de caráter que poucas pessoas têm -  por isso, merecem nossa admiração. Kant dizia que virtude não é o que nos torna felizes, mas o que nos faz merecê-la.

No fundo cada um de nós carrega lá seus medos e temos com eles um embate constante.

O meu, dos mais terríveis para várias pessoas, passa por falar em público.

Não me recordo de todos os detalhes, talvez tenha sido quando tinha eu 10 ou 11 anos e estava na quarta-série. Eu era apenas um menino nos anos 70.

E o que eram meninos nessa década? Eram rapazinhos que brincavam de revólver de espoleta,  metralhadora de plástico e ficavam horas na frente da televisão assistindo reprises e mais reprises do Fantomas, Super-Dínamo ou do "Homem de Seis Milhões de Dólares" - isso quando alguém não aparecia gritando no portão para ir jogar bola na rua.

Já as meninas eram muito diferentes das pré-adolescentes de hoje, que vivem de celular na mão, mas miram seu estilo de vida no prolongamento da infância.

As garotas da década de 70 tinham como referência mulheres adultas. Usavam maquiagem, andavam de salto e fumavam muito precocemente; tinham preferência pelos mais mais velhos e, em que pese serem repetentes e esnobarem a escola, eram culturalmente mais sofisticadas - andavam com livros, conheciam poemas e ouviam músicas em inglês.

Ficavam no portão da escola com outros rapazes que chegavam ali de moto e se fechavam num clube muito pequeno de pessoas - eram os "roqueiros".

Já nós preferíamos ficar perto do homem que vendia sonho, pingo de leite e geléia com a esperança de tirar uma premiada que dava direito a mais outra. Nosso debate cultural eram as incansáveis discussões para chegarmos a alguma conclusão se o Ultraman era pai, irmão, tio ou primo do Ultraseven e, tirando os livros da escola, nossas preferências literárias eram os álbuns de figurinhas disputadas no tapa.

A possibilidade de um encontro entre esses dois universos era algo como o choque entre a matéria e a anti-matéria.

Mas ela aconteceu.

Foi-se lá um dia em que professora inventou de fazer uma coisa chamada "amigo-secreto".

No dia do sorteio estava despreocupado, com a mais absoluta e inabalável confiança de que nenhum evento pudesse mudar a vida tranqüila de um garoto protegido pela rotina das brincadeiras de infância na periferia de São Paulo.

Talvez a mesma sensação que por ventura sentia um Dinossauro da mesma idade momentos antes de um meteoro gigantesco cair no México a 66 milhões de anos atrás e mudar a vida no planeta a partir dai.

Coloquei a mão na caixa e puxei o papel de maneira displicente. Virei as costas para a mesa da professora e fui andando de volta para a minha carteira, abrindo devagar o embrulhinho de papel com o nome do meu amigo secreto.

A menina mais bonita e visada do colégio era da minha sala - menina tão inalcançavel que o meu radar não a registrava como algo tangível, embora eu suspeitasse que ela existisse quando passava pela porta depois da aula ter começado e saisse antes de terminar.

E era o nome dela que estava escrito ali naquele papelzinho.

Passei dias tentando trocar o "bilhete premiado" com os meninos do meu grupo, mas estes me olhavam como se eu estivesse vendendo ingressos para um encontro com a loira do banheiro.

Como em todo amigo secreto havia trocas de correspondências.

E a garota, como não parava na sala, deixou para a última hora um recadinho dizendo o presente que ela queria. Sem coragem de ir até a mesa para não levantar suspeita, pedi para um amigo pegar para mim.

Ai a gente conversava murmurando baixinho.

- Então, o que está escrito???

Minha expectativa era algo como um saleiro, uma colher de pau ou uns paninhos de prato, já que minha experiência com presentes para mulheres se restringia ao que a minha mãe comprava para dar para as professoras no final do ano.

- Não dá para saber direito, mas acho que ela quer um disco do Elvis


- Tá escrito o quê?

- Tá escrito Kiss, "Disco do Kiss".

- Que "Kiss"???

- Eu só conheço "Kiss me Quick".

- Mas por quê ela não escreveu isso, então?

- Ela não fica muito na aula, né? Acho que ela não sabe escrever tudo.

Eu ali, naquela hora, não vou mentir: aquela resposta parecia a coisa mais sensata do mundo.

No outro dia procurei o disco nas lojinhas da Vila Maria e achei um compacto.

Pedi colocar papel de presente e dai era só aguardar o dia.

A pessoa que me tirou me chamou, ganhei o meu presente e agora tinha que retribuir para outra pessoa.

Foi ao me virar para a sala que então descobri que ser o centro da atenção de muitas pessoas não é uma experiência necessariamente agradável. Se você vê a largada do Ironman como um negócio tenso,  não entende o profundo significado da palavra "pavor" quando a gente tem que se expor na frente de trinta pessoas em uma situação a qual eu não teria coragem de encarar nem um quarto escuro.

Meu coração palpitava, sentia calafrios e uma brutal dificuldade para conseguir encadear uma frase...

Óbvio que tive um branco e esqueci o nome da menina.

Eu olhava para o fundo da sala e ela sorria deduzindo ser a pessoa, pois faltavam poucas para receberem...

Bem, não sei. Apenas lembro dela vindo em minha direção....

Mas um menino de dez anos não está equipado com um aparato biológico para a sequência de eventos que se dá em um amigo secreto, tal como as tartarugas já nascem sabendo que devem correr para o mar.

Nesse sentido, ali exigia-se uma decisão crucial e, consequentemente, de enorme maturidade.

Cumprimento de mão ou beijinho na bochecha?

Ela veio para dar uma beijo e eu estendi a mão, ai ela voltou, mas eu achei que ela queria e fui pra frente, mas me arrependi e recuei quando ela já estava vindo novamente. Vendo que ia bater a cabeça no meu peito, abaixei a minha, mas no reflexo estiquei braço para dar a mão de novo...

Ficamos os dois sem saber o que fazer.

Só um segundinho, por favor...

aaaaaaahahahahahahahaha....

Pronto.

Quando acertamos que seria um beijinho, não conseguíamos decidir o lado. Ficamos raspando o nariz um do outro até decidir quem ia para a esquerda e quem ia para a direita...

Até hoje não me recordo de como isso se resolveu. Quando tento me lembrar tenho sensação de desmaio - acho que meu cérebro sabe que eu não agüentaria o trauma de descobrir.

Lembro dela abrindo o papel de presente.

Tirou o disco, olhou a capa e sem olhar pra mim disse "obrigada" de forma doce como só as meninas sabem dizer.

Foi então que notei pela camisa que ela usava
que tinhamos entendido tudo errado.

Mas nem pelo tom de voz, nem pela expressão deu ela a entender que eu havia feito confusão com os presentes.

Ao me proteger daquele constrangimento, pela primeira vez tomei conhecimento prático de um conceito ainda muito abstrato na relação entre meninos e meninas: delicadeza.

E que a garotada....bom, você sabe que a garotada é cruel.

Mas ninguém disse uma palavra.

Não, não nos tornamos amigos ou nos falamos mais depois daquele dia. Sequer trocávamos olhares quando estávamos próximos.

Porque certos encontros são assim. São feitos de pequenas pontes que surgem ao acaso e apenas pelo acaso.

Falar sobre isso me faz pensar quantas vezes respirei fundo para vencer a timidez a fim de transformar um garoto introvertido naquilo que ele deveria ser.  Até hoje o menino de dez anos que vive no meu coração odeia se expor, mas a paixão pelas minhas vocações sempre foi maior que os medos dentro de mim.

Mas aqueles dias não consigo esquecer.

Naqueles dias a cauda de um meteoro cruzou o céu.

9 comentários:

FREE ATLETA disse...

kkkkkkkkkkkkkk....Rachei o bico man !!!!!!

Anônimo disse...

Cara, você é O CARA!!! Puta texto... Sem mais!!!

Nacatko, Inc disse...

Kkkkkkkkkk.... vc é uma figuraça. Muito bacana e alto astral. Comecei o dia bem lendo este seu texto. :-)

simplifique disse...

lembrei de um sorteio no trabalho, lá pelos anos 96. A mina que vai sortear era a maior gata e eu que nunca ganhava nada fui sorteado.
Nervosão fui lá e puuummm, apertei a mão dela.
O mané !!!

Pablo Bravo disse...

Bessa...Bessa hehe

Sensacional!!!

Tá perdoado...nos primórdios, eu achava que o Kiss eram personagens de filme de terror.

Deise jancar disse...

Super meigo. A timidez de muitos homens conquista, viu ?

Yeda disse...

Quando tinha 10 anos eu pedi o disco do Camisa de Vênus na escola e no Ballet. Fico pensando até hoje as mães das minhas amigas tendo que comprar este disco. Acho que recomendaram as filhas a ficar longe de mim...rs rs rs

Max disse...

Bessa, eu prefiro falar pra 10.000 pessoas que largar no meio de duzentas.

Unknown disse...

Boa Bessa ! :D