domingo, 3 de janeiro de 2016

Epílogo



"Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, inevitavelmente, todas as coisas humanas a ruína e a destruição, se não fosse a faculdade humana de interrompê-lo e iniciar algo novo, faculdade inerente à ação como perene advertência de que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para recomeçar"

Hanna Arendt


Para quem teve a oportunidade de encontrar esse Blog, certamente percebeu muitas mudanças ao longo do tempo. 

Porque eu mesmo ia mudando.

Nesse sentido, creio que é hora de um epilogo, já que estou deixando o triathlon.

São vários motivos e talvez me falte clareza para organizar cada ponto conforme a sua importância.


Acho que o fato fundamental  foi a minha incapacidade de ter uma relação honesta com os treinos.


No início treinar me motivava como nenhuma outra coisa. Ao longo dos anos isso mudou e essa motivação se transformou em uma rotina neutra, que fazia sem pensar e esforço em dois períodos.


Hoje é um fardo. Um castigo.


Eu simplesmente não quero estar ali.


Alguém pode argumentar que para todos é assim, que não se trata de "prazer", pois o sacrifício que se impõe no presente é uma troca por um bem maior no futuro.


O problema é que não vejo um bem maior no futuro, um prêmio a ser buscado.


Além de talento, me falta capacidade de perseverar.


E também não encontro sentido em "competir comigo mesmo" -  porque o meu adversário se retirou.


Nada descreve melhor a angústia que a analogia de você possuir uma moeda sem saber onde ela vale.

Mas existe um momento em que você precisa descobrir sob o risco de viver uma vida que não valeu a pena.


Ao longo do último ano fui redescobrindo meu campo profissional e interesses fora dele, o que por sua vez me abriu perspectivas pelas quais sou capaz de ficar imerso como não consigo mais no triathlon.


No fundo, é o mesmo prazer de passar pelo portal de um Ironman - é apenas uma alegria que está em outro lugar.


Não duvido que muitos achem que essa decisão é uma fase decorrente de um período longo de muitas provas e treinos.


Um "ironman blues", como se tal coisa existisse.


No fundo, as pessoas do triathlon gostam tanto desse esporte que acham que a explicação para o desinteresse só pode ter explicação dentro do próprio triathlon.


Quando falava dos meus planos de parar com o Luquinhas, ele ficava aflito, tal como se eu estivesse em uma crise.


Na verdade é só uma parte de mim que vê um mundo diferente.


Em um dos seus últimos textos Oliver Sacks fala sobre lembranças.


Ao depor sobre a infância, descobriu que muitas passagens que narrava não havia acontecido com ele, mas com outras pessoas.


Nesse sentido, nossa memória individual é também um registro coletivo de experiências compartilhadas.


Com esse espírito, não vou trancar a porta desse Blog porque as coisas aqui dentro não são minhas.


Vou apenas forrar o vão embaixo da porta, trancar bem as janelas e estender um lençol nos móveis para que não peguem poeira.


Afinal, nunca se sabe.

A chave, se você tiver interesse, está embaixo do capacho.


sábado, 2 de janeiro de 2016

Ironman Barcelona 2015



Em uma Galáxia muito distante, havia um certo consenso que um Ironman por ano, vá lá - dois é caso de internação.

Não é bem assim.

(Embora alguém possa argumentar que uma coisa é fazer dois em um ano -  outra, bem distinta, fazer dois por ano todo ano.)

Mas isso não tem a ver com genética, suplementos ou equipamentos.

É calo mesmo.

Só que tal como aquela máxima sobre o futebol, que diz que fazer mil gols como o Pelé fez não é difícil - difícil é fazer um, penso o mesmo para o Ironman.

Pessoalmente, valorizo boa performance que o acúmulo de provas.

Porque acho mais difícil ser rápido.

Tenho uma hipótese, nada científica, que a partir de um determinado ponto todos experimentamos a chamada "lei dos rendimentos decrescentes" (uma coisa muito conhecida em economia).

Isto é, a cada ano você tira proporcionalmente menos resultado de cada minuto que coloca a mais na piscina, no rolo ou na pista.

A maioria dos técnicos sabe disso por experiência, mas não diz. E ao não dizerem, deixam implícito que os treinos podem te levar a uma progressão quase infinita - um pouco reforçada por aquela bobagem repetida ad nausen de que "tudo é possível".

Talvez não se trate de falta de franqueza, mas de oportunidade.

Mas isso é um fato, pois depois de um período de recordes pessoais,  em um dado momento você vai bater de frente com seguinte dilema e das duas, uma: ou se conforma com um recorde de dez minutos conseguido a duras penas e tenta ser convincente no "Feliz por terminar mais um Ironman" - ou procura aquele algo a mais que te tire do platô da qual o seu desempenho não sai.

O problema é que esse "algo a mais" é uma tentação para estratégias Kamikazes cujo resultado é uma quebradeira espetacular ano a ano.

Sendo honesto, estou mais para esse último grupo e certa teimosia me faz pensar o seguinte: é muito treino para usar tudo em um dia só.

E como shit happens é pior ainda pensar que tudo pode ter sido em vão porque aconteceu um acidente.

Por isso, logo depois do IM de Floripa comecei imediatamente o tratamento de um estiramento na panturilha e lá se foram oito semanas sem correr.

Coisa que o Luquinhas, a quem pedi para me preparar para essa prova,  entendia que não seria tão problemático, desde que eu não parasse os treinos nas outras modalidades.

Fazendo um retorno gradual e seguro, me espantava com o pace alto, mesmo que a sensação fosse de estar correndo como sempre corri.  Qualquer longo com média de 5:45 era para sair soltando rojão.

Não prova foi diferente, mas espera até chegar lá que eu conto .

O IM de Barcelona é realizado na cidade de Callela, uma cidade litorânea a pouco mais de uma hora de Barcelona. Comprei o pacote da Nirvana Europe, que se propõe a fazer o mesmo que o Endurance Sport Travel - quem fez a negociação foi uma chapa porque tínhamos perdido o prazo para a inscrição, mas vou avisando que o vai e volta de emails com eles dá dor de cabeça.

Ficamos no Hotel Balmes,  que fica a mais ou menos uma milha da área de transição e tem um restaurante excelente, seja qual for a sua dieta. Perto ainda tem mercados e outras lojas em um centro comercial bem simpático.

E vale dizer que achei bem mais fácil entender os espanhóis que os chilenos em Pucon.

Na primeira vez que topamos com o dono do restaurante do hotel, este veio nos perguntar o número do quarto para colocar na comanda.

- Twosixeight...
-???? Two...
- Two, six, eight
-Two, si..ei
- Dois, seis, oito.
-Dos, seis, occho?
-Dois, seis oito.
- Então porque vocês não falaram dois, seis oito?????

Caso queira dar passear em Barcelona depois da prova,  não precisa mudar de hotel. Dá para fazer um bate e volta com trem e a estação bem pertinho. Olha aqui.

No transporte, recomendo a Air France, que não cobra o transporte da bike. Se puder, faça pegue um voo direto, sem translado, pois nesse caso é alta a probabilidade do seu mala-bike se extraviar.

Um pouco dessa história contei no Mundotri.

Mas deixa eu falar agora da organização e da prova.

Para quem fez apenas o Ironman no Brasil, o IM de Barcelona é bem mais simples: não tem voluntários que ficam paparicando na entrada do bike-checkin ou aquele pessoal atencioso no guichê explicando a prova, as sacolas, as pulseiras, o horário e outras coisas mais.

Não há cavaletes fixos e cada um que leve a sua bomba de mão no dia da prova (eles guardam).

Outra coisa estranha, pra mim, é  o banheiro.

Descobri pelo Luquinhas que se trata de algo popular em Barcelona, tal como ele demonstra ai na foto.

Muito bacana, né?

Mas no, thanks....

A Prova

Uma coisa é se diz sobre Barcelona é que se trata de uma prova rápida - e é verdade.

Só não faça a triste confusão entre prova rápida e prova fácil.

Natação

Entre as imagens mais bonitas do esporte - entre todos eles - é a largada de um Ironman é inigualável.

Aquela massa de nadadores avançando no mar é de encher os olhos e, não sei, tem alguma coisa de épico quando visto de fora.

Mas lá dentro a perspectiva não é nada romântica.

Por isso achei o sistema de largada do IM de Barcelona inovador. O segredo? Simplicidade.

Tal como acontece nas corridas de rua, os atletas se posicionam em um funil de acordo com o tempo que imaginam fazer.

Essa entrada conta-gotas diminui demais a pancadaria e facilita a vida de nadadores como eu, que às vezes fica mais tempo lidando com cotoveladas e chutes na boca do que com a natação propriamente dita.

Outra coisa bacana é sistema das bóias, sobretudo porque nas maiores havia a marcação da metragem.

Para mim, que faço um traçado na água que parece exame de psicotécnico e tenho angústia de não sair do lugar,  esse sistema de referência vai bem.

O percurso é de apenas uma volta. Você vai margeando a praia e sofre bastante com as marolas, sobretudo na volta (para quem respira do lado direito, o retorno é mais difícil).

O que vou dizer agora é um pouco polêmico, mas fico com pena de quem entra no mar querendo fazer uma natação técnica, otimizando a braçada, tal como na piscina.

Trago isso desde dos tempos do Ironguides e trata-se sensação que se confirma sempre: vencer a resistência no mar é usar braçada curta e rápida - mas ou menos como fazem os surfistas quando estão deitados na prancha.

Existem bons argumentos de quem pensa diferente (e nada muito melhor que eu, diga-se): nadar sem foco na técnica é mais desgastante porque a força é usada de forma ineficiente.

Sai da água desgastado, embora por motivos outros.

Primeiro, me esforcei menos nos treinos comparado aos outros anos e, segundo, acho que qualquer mudança de técnica é mais desgastante enquanto seu corpo não a realiza sem você pensar.

E tem um fundo psicológico que explica minhas preferências: quando entro em um mar difícil, parece que estou em uma boa briga e me dá orgulho ter dado duro por vencer a correnteza e as marolas. Não penso tanto no tempo.

Penso no embate.

Fiquei na área para quem imaginava uma natação entre 1:10-1:15.

Sai da água em 1:14.

https://connect.garmin.com/modern/activity/929187091/1

Bike

Acho que se você fez inscrição para o Ironman de Barcelona, certamente viu que os tempos são bastante competitivos.

E em parte isso se explica pelo percurso do pedal. São duas voltas e meia com poucas subidas, pouco vento e um piso perfeito.

A paisagem ao longo da encosta é o registro da prova mais bonito que você via trazer para a casa.

Quando sai da transição e acionei o Garmin 920XT para a modalidade bike, o danado me pediu atualização do software e calibragem.

Pode isso produção? No meio da prova?

Já é a segunda vez que acontece (a outra foi em Brasília). Um saco.

Perdi dois minutos atrapalhando todo mundo e sai apenas com o relógio.

Não senti falta na prova, porque não usaria os dados de potência no percurso, mas eu queria ter o registro para olhar depois.

No começo do pedal ainda sentia o desgaste da natação e durante os primeiros 30 minutos, onde o terrenos é mais morrado, fui me alimentando com as barras sensacionais da Powerbar (que patrocina a prova e ainda distribui várias delas no percurso).

Logo após esse sobe e desce (nada complicado) ainda não dá para embalar porque existem muitas rotatórias.

Depois delas, entretanto, é uma reta só em um falso plano - uma barbada.

Infelizmente, entretanto, é irritante as centenas de pelotões que lembram os piores momentos do IM de Florianópolis.

E antes que alguém culpe los cucarachas, a esmagadora maioria dos que andavam na roda era de meninos rechonchudos, branquinhos e criados com muito leite ninho.

E aquele indelével cofrinho para fora.

Depois de trinta minutos minha força voltou - justamente no final das rotatórias e comecei a pedalar forte, mas tentando melhorar a minha cadência, já que o Luquinhas tinha pedido algo pelo menos razoável. Não precisava ser 90, mas certamente mais que 64 rpms. (consegui 74).

Passei por aquele mudaréu de gente que blefa no começo no pedal e acho que nunca me senti tão bem (embora eu sempre escreva isso).

Só que quando comecei o retorno para fazer a última volta, mais curta, algo tinha me derrubado.

Quebrei? Exagerei? Desidratação? Suplementação?

Pessoal fala muito em percepção, e sei lá quantas vezes já me bati sobre a visão ingênua com que se discute esse assunto.

Para muitos, a percepção é algo "simples", "natural" e você só precisa saber ouvi-lá.

Essa fé cega nas qualidades da percepção é análoga ao mito do "bom selvagem" - tudo que está dentro de você é natural, puro e transparente; o que está fora é artificial e corrupto.

Essas oposições são de uma burrice.....

A exceção de um grupo restrito de pessoas, qualquer discussão sobre as relações do cérebro humano e a nossa sensibilidade começa com algo do tipo: "eu estava pensando...."

É inacreditável o número de pessoas que "pensam" - mas não pegam um livro para ler.

O triathlon está cheio de intelectuais de selim.

E nem nossos técnicos e preparadores físicos escapam.

Todos são ótimos quando falam sobre fisiologia e esporte, mas se o assunto são questões relativas a mente, estão um pouco pra cá do século XIX.

Tudo chute.

Ai haja teoria motivacional - ainda que essa questão seja uma falácia.

Confesso que esse assunto me deixa de mal humor, embora duvido que você tenha percebido...;-)

Na verdade, a tudo foi bem mais simples: minha bem quista percepção não registrou que entrou um vento contra na última tomada.

Só isso.

Tão logo fiz o retorno para voltar para área de transição e finalizar o percurso, a sensação de quebra desapareceu quase que por encanto.

Óbvio.

Nesse momento, sim, me fez falta o medidor de potência para tentar entender o que teria acontecido.

Fechei o pedal para 5:20 pedalando pesado e com cuidado no último trecho, que é um funil bem estreitinho.

https://connect.garmin.com/modern/activity/929187188

Corrida

A maratona do IM de Barcelona é para você fazer bonito, já que sendo ao longo da praia é plana.

O desafio, todavia, é lidar com o cansaço e a fadiga mental, já que são quase quatro voltas em um percurso bastante monótono.

Fiquei tomando comendo sem pressa antes de sair para a maratona. Confesso que os treinos não me davam uma perspectiva muito animadora para pular na pista.

O primeiro quilômetro foi na casa dos 5:50. Bem, pensando que eu estava correndo fraco nos treinos em 6:30, não era ruim.

O segundo, 5:30. O terceiro, 5:10. O quarto, 5:11. O quinto, 5:08....

Ahhhh Luquinhas!!!!

Eu tinha um objetivo simples: fazer a maratona abaixo de quatro horas.

E eu sabia que em algum momento esse tempo iria subir ou poderia quebrar - e precisa acumular gordura.

Foi nesse pé que corri até o quilômetro 10, mas a partir dai comecei a sentir que me faltava força e o pace foi para 5:30 ou mais, mas abaixo de 6:00  até o quilômetro 17.

E ai cai na besteira projetar o sofrimento que viria pela frente.

Isso é fatal.

Parei para tomar água e no terceiro gole comecei a vomitar. Um fiscal me pediu para parar.
Tiraram a minha pressão e alguém da organização me aconselhou a desistir

Depois de algum choro alegando que seria apenas um problema estomacal passageiro e que pressão estava ok, me liberaram para andar.

Não sei se foi o estresse doa dias anteriores ou a água mineral pesada.

Ou se estou arrumando desculpas por ter ido além do que podia.

Andei 14 quilômetros e só retomei com muito custo para correr os últimos dez, já que a musculatura fria doia demais quando batia o pé no chão.

É desolador. As pessoas adoram videos motivacionais do cara que vai até o fim, mas sinceramente ando cansado disso.

Fechei a corrida em 5:16.

https://connect.garmin.com/modern/activity/929187222

A prova, em 12:08.

Em resumo, um ano bem difícil.

Ou talvez não seja o ano, mas a falta de franqueza comigo próprio sobre o que posso esperar de uma prova de Ironman.

Mas isso fica para um próximo post.

Feliz 2016 a todos!!!!