sexta-feira, 1 de maio de 2015

Doping: vale a pena denunciar?


Essa semana circulou pelas redes sociais a foto de um pote de Oxandrolona, cujo rótulo expunha o nome de um famoso médico especializado em esportes que atende vários triatletas profissionais e amadores em uma clínica em São Paulo, assim como a farmácia de manipulação que produziu o medicamento.

Para quem não sabe, tal como eu não sabia, a Oxandrolona é um esteróides anabólico utilizado em basicamente três situações: síndromes catabólicas, osteoporóticas ou queimaduras, mas que quando utilizada fora desses contexto tem a função de promover o aumento da massa muscular, potência e força - em suma, doping.

Não é possível identificar o proprietário, mas a farmácia de manipulação que produziu o medicamento se diz especializada em medicina e nutrição esportiva, além de citar um catálogo de convênios com vários entidades e clubes importantes. 

O que levaria um profissional da área de medicina esportiva a receitar um anabolizante para um cliente e este realizar a encomenda em uma farmácia de manipulação especializada na mesma área? 
Por que o site da farmácia foi retirado do ar tão logo o assunto ganhou corpo?

Questões como essa poderiam ser desanuviadas por meio de um procedimento muito simples. A venda de anabolizantes é controlada e a legislação obriga o emitente a fazer duas vias carimbadas da receita com nome e CRM. Uma via fica com o paciente, outra com a farmácia.

Bastaria ao médico comprovar a falsificação da prescrição ou justificá-la, apontando a necessidade do medicamento indicado ao atleta por meio de exames. 

Assunto encerrado.

Mas estamos longe disso.

Casos como esses têm enorme repercussão frente a fortes indícios do crescimento do doping no triathlon, sobretudo entre os amadores. 

Uma pesquisa  realizada com cerca de três mil triatletas inscritos no Ironman de Frankfurt, Regensburg e o 70.3 Wiesbaden deram resultados alarmantes: 13% dos inscritos admitiram o uso de esteróides, EPO e hormônio do crescimento e outros 15% consumiram o consumo de anti-depressivos, beta-bloqueadores entre outros.

E não parece haver solução de curto e médio prazo. O controle de doping é raro e seletivo fora das modalidades olímpicas, voltado para os profissionais e quase inexistente entre os amadores.

Nesse contexto, parte das informações sobre doping têm origem em denúncias divulgadas em redes sociais abertas e fechadas, mas sobretudo nessas últimas. O caráter sigiloso ou anônimo da denúncia, mesmo que nem sempre possa ser justificada, é de fácil entendimento.

Aqueles que dispõem de informação e se propõe a enfrentar o problema podem sofrer as consequências da "judicialização da censura", isto é, uma ameaça que se impõe a liberdade de expressão por meio da intimidação judicial. Para muitos, o medo de ser processado acaba levando a autocensura, mesmo que frente a necessidade de que todos tenham conhecimento sobre o comportamento de atletas, técnicos, nutricionistas e médicos que fazem uso desses recursos. 

Essa situação não se limita apenas aos indivíduos. Há os que argumentam que  atletas pegos em exames de anti-doping não têm seus nomes divulgadas por receio de organizadores arcarem com os custos de processos judiciais. As Revistas Eletrônicas apenas repercutem casos comprovados pela mesma razão.

De fato, frente a justiça a relação denunciadores-denunciados não é simétrica, pois se denunciadores podem incorrer nos chamados "crimes contra a honra" e sofrerem as consequências de processos penais e civis que incluem calunia, injúria e difamação, por outro lado o doping não é um ato passível de uma ação criminal.

Como o doping exige um processo complexo de comprovação, opera-se uma inversão de valores: a justiça é utilizada para blindar infratores ao mesmo tempo que intimida pessoas que mostram preocupação com erradicação do uso de substâncias ilícitas.

O resultado é uma situação de conforto para que médicos e nutricionistas suspeitos transitem em meio ao triathlon com grande desenvoltura. 

Não raro, apresentam-se em conjunto com seus clientes mais conhecidos, mostrados como "cases de sucesso", e investem na imagem de promotores saúde e bem estar. 

Só que não causa espanto a você que indivíduos sadios sejam habitués de consultórios médicos a procura de tratamento hormonal? 

Mas novas abordagens sugerem que os envolvidos com doping podem ser enquadrados em crimes contra a saúde pública quando em situações tipificadas como estelionato, fraude ou o uso de drogas ilícitas. Segundo seus defensores, o doping extrapola a dimensão da ética e da concorrência esportiva, já que a saúde é um direito humano que deve ser resguardado e protegido pelo Estado.

O cidadão que dispõem de indícios ou sofre com as consequências do doping deve acionar a Delegacia de Repressão contra a Saúde Pública nos estados onde ela existe, e abrir inquérito criminal no caso de falsificação ou venda ilegal de suplementos, substâncias ou falsificação de exames antidoping. Em São Paulo, há o Departamento de Policia de Proteção a Cidadania, que opera por meio de duas delegacias especializadas.

Caso as investigações gerem documentação consistente, os delegados encaminham os inquéritos para o Ministério Público ou o Poder Judiciário.

É necessário dizer que o cenário de uma queixa explicita seria mais justo com aqueles que são denunciados nas redes sociais,  pois a ausência de uma denúncia formal não lhes dá meios de se defender. A reputação é um direito a ser protegido  - e não apenas a dele, pois tanto seus clientes como as entidades com as quais esse profissional se relaciona passam a ter a chaga da desconfiança pública.

Do ponto de vista dos consumidores, ainda que as políticas anti-doping possam ter caráter punitivo, tais medidas visam proteger esses mesmos atletas, amadores ou profissionais, de situações de risco. 

Conforme aponta Fernando Mussa, Professor de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina de São Paulo, trata-se de uma questão mais geral. Diz ele, "Essa corda bamba entre o risco pessoal e a glória desportiva, inerente ao esporte, deve ser cuidadosamente trilhada. Isso sob pena de condenarmos nossos atletas a servirem de verdadeiras cobaias humanas para os mais diversificados experimentos farmacêuticos e nutricionais voltadas à melhoria da performance humana nos diversos tipos de esportes".