Esse sábado tive um sonho...
- Pula, pode pular....
- Não.
-Rapá, você não pode ficar ai em cima. Pode pular...
- Não, não vô não.
- Merrrrrmão...
- Não quero nem olhar pra baixo. Tá muito alto aqui....
- Meu filho, cê vai ficar ai até quando?
- Aqui tá bom. Posso até subir mais se você quiser...
- Você tem que confiar em mim....
- E quem me garante que você é o Rodrigo! Quem me garante que você não é uma alfafa alienigena que clonou o cara?
- Como não sou eu??? Que maluquice é essa?
- O Rodrigo é do Rio, velho! Onde já se viu um carioca falar "merrrrmããão"?????
- Vou falar como paulista? "Ô lôco, véio" ????
- Pra sua informação, paulista não fala assim! Quem fala assim é corinthiano mano! Corinthiano e motoboy da ZN e da ZL, tá ligado?
- A prova é daqui a três semanas rapá!
- Não quero fazer a prova mais!
- Oi?
- Vamos deixar para o ano que vem! Faço o ano que vem...
- Cê vai descer dai já! Vou ligar para sua mãe! Tô te avisando que vai ser pior...
- Não, pra mãe nãããão.....
- Já tô ligando, aqui múleque.
- Tudo bem...vou pular!
- Vamos começar contagem regressiva ai você pula. Ao meu sinal, atenção: 5,4,3....
- Não, eu conto...
- Então conta...
- Nove mil, novecentos e noventa e nove, nove mil, novecentos e noventa e oito....
- Ôôôôô Vagnêêêêrrrrr.....
Bom, ninguém precisaria ler a "a interpretação dos sonhos" para sacar que essa histórinha inventada significa que chegou a hora do polimento.
Como comentei com o Rodrigo, não é um momento fácil. Porque durante meses o técnico nos pede para subir, subir, subir o volume e, chegando em alturas que você nunca imaginou, ele te pede para dar um salto.
Embora a periodização seja uma redução de volume e intensidade bem pensada com uma contagem regressiva, não interessa: a sensação é que você está no topo de uma torre de oitenta andares e vai dar um pulo, só que lá embaixo tem apenas uma rede de proteção que você cobre com a ponta do seu dedão...
Esse período é todo complicado. As dúvidas que apareceram aqui a ali durante o treino agora caem de uma vez na sua cabeça como aquelas bigornas de desenho animado.
Você se vê diante de sentimentos confusos, pois a sensação de overtraining durante a parte mais dura dos treinos é repentinamente substituída pelo sentimento inverso, isto é, agora tem-se uma forte desconfiança de que não se fez o suficiente.
Ai vem aquela um mundo de sensações contraditórias: temos dores musculares ao mesmo tempo que nos sentimos destreinados e....obesos!!!!!
Quem já passou por isso tem como única vantagem saber que todo ano é igual.
Só.
Porque entre a tranqüilidade de se "saber" e aflição do "sentir" vai um longa distancia.
E, mais estranho: fico com a sensação que não tomo banho....
É, nem tente entender essas esquisitices...
Parece que me tiraram o chão....e o chuveiro.
Talvez você não sinta todos esses sintomas - eu tenho todos!
Portanto, acho que pouco posso fazer para quem está nessa fase...
Pois se nem o autor do Blog consegue se auto-ajudar, o que dirá "auto-ajudar" os outros, não é?
A única consolação que posso dar é que isso é assim mesmo e que essa angústia é normal. Não é necessário "lutar" contra ela nem sentir confuso, pois é apenas o seu corpo se ajustando para o embate que virá.
Então eu assumo que isso me angustia mesmo, faz parte e que, entre o técnico e minha mãe, o coach é mil vezes melhor.
Porque minha mãe diria algo assim: "Engole esse choro, agora! Eu disse a-go-rááááá. Olha o monte de roupa que eu tenho pra lavar e vê se tem "polimento" pra mim???? Vá-Vá-vá...."
Quando eu estou "meio assim" eu vou na casa da minha mãe e ela me dá um choque de realidade que vou te contar....
Saio de lá achando que eu tô mesmo é precisando encarar um tanque de lavar roupa...
Há outro sentimento, que eu chamo de "não sei o quê" e que é parecido com uma melancolia.
Mas não é bem melancolia....é um sentimento de não sei o quê!
Entendeu? ;-)
Como se gente deixasse algo para trás algo que doeu e ao mesmo tempo não quiséssemos nos separar ou esquecer inteiramente.
Há momentos em que você se sentiu quase vencido e foi capaz de terminar um trabalho simplesmente porque ele tinha que ser finalizado. E depois se sente bem apenas ao caminhar em meio a uma tarde de sol porque, mesmo com o corpo cansado, a mente está em paz.
E "deixar a mente em paz" é uma coisa que, pra mim, não é tarefa das mais triviais. Chega a ser um momento raro.
Mas esse processo não é tranqüilo. Acho que há cicatrizes que são dificeis de interpretar, pois ao mesmo tempo que é essas são a evidência mais crua de que somos aptos para suportar o sofrimento, ainda assim são cicatrizes - e existem pessoas que não gostam de olhar para as suas.
Não é a toa que para muitos o Iron envolve uma experiência que não vale ser repetida.
E para desanuviar qualquer dúvida, não vejo nisso como problema algum. Um projeto de vida pessoal pode ser construído em outra esferas da vida, tanto no campo pessoal como profissional.
E sou daqueles que defendem que se tem uma experiência de vida mais rica quando se fracassa na defesa de um objetivo autêntico do que quando se vence por um desafio imaginário apenas para auto-consumo.
No fundo, eu acredito que as pessoas se empenham por "paixões" - mas em um sentido mais amplo que esse com a qual nos acostumamos no dia a dia.
Paixão pode ser amor, mas também, orgulho, inveja, medo, ódio, tristeza, coragem e outros afetos.
Espinosa dizia que existem as "paixões tristes", que nos empobrecem, nos tiram a vontade de existir e nos torna menores do que o que realmente somos ou podemos ser; e existem as "paixões alegres", que alargam nossos potenciais e aumentam nossa capacidade de perseverar.
Quando o esforço de perseverar se refere a alma chama-se isso de "vontade".
E porque perseveramos de forma obstinada?
Porque isso nos torna livres. Na filosofia, "vontade" e "liberdade" podem ser tomados como conceitos idênticos.
Sentir livre não é apenas escolher o que se quer e o que não se quer, mas seguir as potencialidades internas que nos impulsionam a agir até o limite da nossa capacidade. São os recursos que nós mobilizamos para a construção de um destino e que tem como base a força das nossas qualidades em todos os planos da vida.
Acho que essa definição, esse modo de ver as coisas, nos ajuda a entender a forma e o conteúdo das nossas expectativas.
No meu primeiro Iron eu tinha treinado tanto, mas tanto...salvo algum imprevisto grave, não havia hipótese não finalizar a prova.
E embora eu tenha ficado feliz por ter concluído, a felicidade estava mais no que eu "recebia de fora", dos amigos, pois me sentia orgulhoso de estar a altura das expectativas deles.
Mas e as minhas?
Demorei três anos para fazer a prova que queria. Aquela que refletisse o que achava capaz de fazer.
Lembro ter passado um amigo na bike e ele gritou brincando, mas um tanto sério,"assim você vai quebrar".
Eu não ia. Eu sabia.
Foi assim também quando estava correndo e o Rodrigo apontou o tempo para mim, dizendo que ainda faltavam dez quilômetros e tinha que manter o ritmo se eu quisesse fazer abaixo de onze horas.
Eu também sabia iria conseguir.
Eu sei que corro o risco de ser mal interpretado, mas não era arrogância e nem pretensão.
Era uma certeza que vinha de dentro. Não havia resistência, desperdício de energia e todas as forças que eu tinha dentro de mim corriam em uma mesma direção - eu não estava lutando comigo mesmo.
Cada braçada, pedalada e passada era um gesto livre, quase sem esforço.
E esse encontro entre as nossas potencialidades internas e a capacidade de realização externa é de uma alegria indescritível.
Assim, o salto que temos que dar é mais profundo.
Embora seja quase irresistível ficar nas alturas depois que se perde o medo, devemos lutar contra esse sentimento, pois essa sensação de liberdade não é real porque não nos confronta com o mundo.
O céu é apenas palco da nossa imaginação e, o abismo, uma fantasia adiada.
É preciso descer a terra.