No último ano, dois filmes emplacaram trazendo a tona a temática da escravidão e do racismo nos Estados Unidos: "12 anos de escravidão" e "Um Mordomo na Casa Branca".
Caso fosse apenas um filme que registrasse de forma intensa a violência brutal imposta aos negros durante a escravidão, o filme não seria uma novidade. Mas 12 anos de escravidão é mais do isso: mostra as terríveis consequências de se viver em um mundo em que você pode desaparecer subitamente, ficando subordinado a vontade de quem em um átimo é capaz de lhe retirar toda a humanidade.
Por esse prisma, o filme tem uma mensagem universal, pois retrata a vulnerabilidade dos que foram (e são) alvos do arbítrio de um grupo em qualquer tempo e em qualquer lugar.
Já "Um mordomo na Casa Branca" acentua uma violência de outro tipo, isto é, a submissão sócio-cultural dos negros na argamassa que serviu de base para a construção da identidade dos Estados Unidos como nação.
Ainda que sujeito a todo tipo de critica que é comum (e justa) aos Blockbusters, trata-se de uma boa história sobre um homem que encaminha a vida de maneira relativamente bem sucedida na sociedade de classes americana da forma que era possível - sendo um negro doméstico.
Desde cedo o personagem de Forest Whitaker aprende que "para sobreviver entre eles" a regra de vida mais importante era o aprendizado de existir sem ser notado - coisa que talvez cause estranheza em nossa experiência atual, já que os indivíduos hoje querem ser notados antes de existirem.
"Você tem que apenas entender e antecipar o que eles querem. Você não ouve nada, não entende nada, apenas obedece"
Ao longo do filme presenciamos os momentos mais importantes da vida americana na luta contra o segregacionismo em vários estados americanos - e não são poucos os momentos em que você fecha o punho, tal como a cena da lanchonete, em que jovens brancos e negros são humilhados física e psicologicamente por recusarem a aceitar a segregação dentro do estabelecimento.
Mas uma das coisas que eu tenho a oportunidade de notar é que a nossa indignação fica na sala de projeção; temos uma profunda capacidade de empatia vendo um filme, mas ela não é capaz de mudar nossa percepção do que ocorre a nossa volta.
Um sábados desses, eu no mercado com poucas embalagens coisas me dirijo a fila para clientes com até 15 volumes. A minha frente, uma senhora passava suas coisas pelo caixa e questionava se as promoções estavam corretas - sem se preocupar muito com a pressa, olhava mercadorias perto do caixa a procura de outras ofertas.
No carrinho dela, entre compras como água, carne, biscoitos e refrigerante, havia pelo menos 12 alvejantes - ou seja: não era necessário usar os dedos para contar mais volumes do que era permito.
Na minha vez, perguntei a menina que estava no caixa por que ela teria atendido a senhora, já que ela não devia estar naquela fila, "Ela disse que não havia ninguém foi me passando as coisas. O senhor sabe, eu não posso dizer nada porque sempre sobra para gente".
A funcionária do estabelecimento pertence a um grupo demográfico muito comum - uma jovem
a provavelmente ensino médio e filhas de migrantes, mas nascida em São Paulo.
Já a senhora era a descrição viva da chamada "elite branca" paulista, mais especificamente a espécie tradicional que reside aqui na Zona Norte e cuja figura me lembra em tudo as chamadas "Senhoras de Santana" da década de 80.
Caso alguém tenha dificuldade com categorias sociais e ache que "elite branca" ofende, recomendo um exercício mais simples: observe o perfil das pessoas alocadas na sua empresa em funções precárias ou de terceirização.
Observe os garis, porteiros, entregadores, vendedores ambulantes, motoristas, ajudantes, pedreiros, empacotadores, seguranças, chaveiros, frentistas, encanadores, serventes, lixeiros, eletricistas, caixas, estoquistas, costureiras, atendentes, garçons, motoboys, carteiros, manicures entre tantas outras semelhantes.
Não bate um certo estranhamento que pessoas sejam pagas para limpar o banheiro da sua empresa, chamadas de "tiazinhas", tenham histórias de vida tão parecidas e tonalidade de pele idêntica?
Decorrente do fato de você ter vindo ao mundo e encontrá-lo já assim, é provável que ache isso comum, resultado de um processo de seleção natural que cataputa os mais fortes para a cabeça da hierarquia social por seus próprios méritos.
Ou então que é apenas o tal "cerumano" explorando outro "cerumano".
Um amigo, Miguel Matteo, me contou uma experiência que ele viu em Roma no tempo em que morou lá.
Vale a pena narrar aqui.
Um casal de brasileiros chega em uma loja e o marido insiste que a mulher deveria levar um vestido.
A mulher recusa. O marido insiste várias vezes. A invés de simplesmente dizer que tinha preferência por outro modelo, a mulher começa então a dar um apanhado sobre os problemas do tecido, da cor e do caimento do vestido que o marido tinha gostado.
Nesse momento, o vendedor se dirige a ela e comenta "Minha senhora, caso não queira levar a peça, basta conversar com o seu marido sobre as suas preferências e as dele - mas, por favor, não coloque defeitos que não existem na peça porque ambos não sabem lidar com discordâncias".
Em sociedades em que o liberalismo tem algum fundamento em termos de igualdade, as relações comerciais têm dimensão apenas econômica, isto é, não há conotação pessoal entre quem oferece e quem compra mercadorias e serviços.
Você apenas compra algo e esse "algo" não lhe dá o direito de agir como um "senhozinho" sobre os funcionários da loja.
Mas isso lá.
Já em um lugar onde o marketing se mistura com os hábitos herdados do passado escravista, dá um bicho diferente.
A idéia do "cliente sempre tem razão" em estabelecimentos comerciais não raro se traduz em outra de igual valor: "a elite sempre tem razão".
Mas a dita elite não se vê assim. Como é pouco instruída e não tem noção do seu papel, acha que já basta ser benevolente para ser socialmente relevante.
Por isso ela fica um pouco confusa e revoltada quando diz que não é "contra os pobres" - já que até tem alguns dentro de casa.
Quando se discutia a PEC das Domésticas, coisas assim vieram a público.
"Minha babá veio com um história sem pé nem cabeça, de que eu estou devendo todos os feriados em dinheiro, porque existem lei agora, onde ela tem esse direito. Estou meio tonta com atitude, decepcionada com a falta de educação e gratidão por tudo que fiz por ela, mas gostaria de saber se sou obrigado a pagar. Quando achamos que estamos com uma babá ótima, lá vem bombas!"
Por que a família de classe média quer se ver como uma entidade cheia "ternura" no espaço doméstico e retrógrada quando falamos em posições sociais mais compatíveis com o século XXI?
Porque a subordinação pessoal ainda lhe agrega privilégios econômicos invisíveis, não obstante bem concretos.
Ela se beneficia dos serviços da empregada como "ente da família"- assim como da da manicure, do pizzaiolo, do motobói ou o sujeito que fica na grelha na churrascaria - porque o trabalho informal lhe proporciona serviços baratos e, consequentemente, um padrão de vida bem acima do que a renda delas lhes permitiria em outros países.
Como dizem dois ex-professores meus, "A subida da renda os serviçais é contraditória com o nível de vida relativamente alto dos remediados".
Mas a benevolência sentimental tem tiro curto, pois quando as contas não fecham o que vinga é o pragmatismo da calculadora financeira. Ainda que ame ficar batendo o papo com os funcionários do prédio enquanto espera o neto chegar na van, esse é primeiro grupo a qual quer ver achatado quando há discussão sobre corte de despesas no condomínio.
E por isso prefere "adotar" a empregada doméstica, dar gorjetas em estabelecimentos comerciais e esmolas na rua.
E como é um poço de desconhecimento sobre história, acha que as disputas distributivas entre as classes ocorrem porque aquele senhor barbudo e o partido dele querem implementar o tal "bolivarismo comunista" no Brasil.
Aqui logo se nota o estrago do primário mal feito no retrovisor de quem se julga algo mais apto a tomar decisões políticas que os outros.
O que esses tontos não são capazes de ver é que essa escandalosa herança servil também põe no laço os mais bonitos, aqueles com profissão definida e que escovam os dentes três vezes ao dia.
De personal trainners, psicólogos, fisioterapeutas, acupunturistas e uma vasta gama de profissionais especializados pagos para cuidar do corpo, da alma e do cachorro dos endinheirados, quantos não são tratados como serviçais domésticos?
Transformados em pessoas jurídicas pelos seus contratantes, em que pese seu status, são profissionais que estão atrás dos caixas de supermercado no que tange ao exercício de direitos trabalhistas.
Eu não vou dizer que vejo gente morta, mas às vezes tem muita gente que morreu no Sul dos Estados Unidos da década de 50 e reabriu os olhos aqui no Brasil - muitos encarnados de donas de casa mal educadas, meninas mimadas, jovens arrogantes e até triatletas.
Não é assim quando um cliente chega em uma bicicletaria e fala com o dono e os mecânicos como se fosse rei e os funcionários sua corte? Não é interessante que o indivíduo que assiste um filme e fica indignado ao ver na tela negros enforcados por pequenos roubos seja o mesmo, o mesmíssimo, que escreve na internet que bandido que roubou a porcaria da bike deve morrer?
A cena do mercado me deixou remoendo.
Por quê não tomei frente? Por que não chamei eu a gerente? Por que não escrevo para o mercado questionando os motivos pelas quais eles não incentivam os funcionários a confrontarem quem dá a si mesmo privilégios?
Em um texto inesquecível chamado "A liberdade de ver os outros" David Foster Wallace escreveu,
"Dois peixinhos estão nadando juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os cumprimenta e diz:
- Bom dia, meninos. Como está a água?
Os dois peixinhos nadam mais um pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
- Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma platitude - mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta, lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte."
(...) A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.
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