quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

As coisas que morrem....

Um dos problemas ao se escrever durante muito tempo é o receio de se tornar repetitivo. E corremos esse risco quando não mudamos ou não permitimos que a realidade a nossa volta mude.

De certa forma, não há muito a se acrescentar sobre o Internacional de Santos de 2014 que já não tenha sido dito tão bem em outros blogs, fóruns de discussão ou nas páginas das revistas eletrônicas.

O que posso dar é apenas um curto depoimento pessoal.

Entrei na água na terceira bateria e, ao ver uma onda monstruosa se formando na minha frente, pela primeira vez na vida senti medo.

Medo como nunca tive antes.


As fotos das ondas que você viu na Internet não refletem o que aconteceu nos momentos mais críticos no mar.


Mesmo com uma certa experiência em águas abertas, estava apenas alguns graus abaixo da sensação de pânico que vi algumas pessoas experimentarem enquanto eram removidas pelos caiaques.

O Internacional de Santos vive uma agonia.

É uma prova cheia de defeitos, todos facílimos de serem reconhecidos – as distâncias não são padronizadas, a logística falha, a expo é menos que um feirinha e o kit é uma sacola com todo tipo de amostras grátis que ninguém precisa. Os voluntários são mal treinados, o controle do tráfego é precário e a população vê os atletas como intrusos que roubam a tranqüilidade da cidade.


Mas é igualmente fácil  lembrar dos grandes nomes do triathlon mundial que passaram por ali e como consolidou-se ao longo do tempo um evento pela qual uma geração compartilha com outra a experiência do triathlon brasileiro. Ela está cravada em uma cidade que é berço de uma elite competitiva e renovada de talentos, e também de uma turma politizada e bacana de ciclistas e triatletas com profundas raízes no esporte amador paulista.


Sempre digo que a área de transição é um lugar sagrado pela experiência de integração que ela nos proporciona. Você pode ficar feliz pelo número de acessos do seu blog ou pela quantidade de “curtidas” que seus comentários levam no Facebook, mas nada se iguala a repetição de acenos, abraços e atitudes de companheirismo na área de transição de uma prova de triathlon.

E a área de transição do Internacional de Santos é uma experiência única.

Mas a vários anos há um fosso entre as nossas expectativas e a capacidade que a prova tem de realizá-las.  Ao voltarmos lá ano após ano, pagamos o preço de conviver com uma contradição que não pode ser resolvida, pois queremos que nada mude e sabemos que tudo tem que mudar.

Espremida até a última gota por um homem personalista e obtuso que parece viver para destruir a tradição que ele mesmo ajudou a construir, o Internacional é uma prova extemporânea que agoniza em uma cidade que não a deseja mais.


Fico pensando na cena da demolição do Novo Cinema Paradiso, no filme de mesmo nome, quando os personagens que viveram intensamente a experiência daquele cinema em uma pequena cidade da Sicília presenciam, envelhecidos e conformados, as paredes da sala de projeção indo ao chão para darem lugar a um estacionamento.

No domingo o tempo de uma era ruiu sobre si mesmo. Tal como sentiram os moradores daquela pequena cidade italiana, parece que nos resta apenas o cansaço.


E uma dor que não dói.

Porque, de alguma forma, as coisas morrem dentro da gente antes de morrerem por fora.

8 comentários:

Guilherme F Gardelin disse...

Caro Vagner, eu também larguei na natação e realmente foi surreal. Mas também não vou comentar mais nada sobre a prova pois já o fiz em outros foruns.
Mas não posso concordar com vc quando diz que a prova morreu. Quem morreu (e não é de hj) é a organização. Recuso-me a aceitar que um local bacana como Santos, berço do triathlon paulista (e um dos brasileiros) deixe de ser um polo importante do esporte. Santos tem todas as condições para sediar qualquer prova. Floripa também sofre desta síndrome da invasão de atletas x conforto dos moradores. A gente não ve isso em Jurure que respira o Iron, mas a população em geral afetada pelo transito derivado do trancamento das vias públicas. Esse fenômeno é geral. O que tem que mudar é a organização. A NA, desculpe a palavra, está morta. Em 2010 (ou 2011 não me lembro)sofri no Internacional porque a água acabou na corrida (sou lento e chego lá atras). Mas nada se compara à irresponsabilidade de se largar num mar daqueles.
Acho que a corda estourou. A NA puxou, puxou, e agora arrebentou.
Temos que liderar uma mudança. Santos é bom, e espero que continue havendo provas lá, mas temos que buscar uma alternativa na organização.
abs
Guilherme

Unknown disse...

Bessa , muito bom , é bem isso mesmo. Parabéns pela clareza e serenidade das palavras,

3 ATHLON NA VEIA disse...

Vagner,
Antes da prova conversávamos na areia a respeito das condições do mar.
Não vou entrar no assunto da natação mas sim na razão que você tem quando fala da transição onde nos encontramos e confraternizamos com muitos de nossos amigos/colegas/adversários, etc.
Não quero acreditar que você esteja certo quanto ao óbito do Internacional. Mas infelizmente meu sentimento é o mesmo.

Max disse...

Bessa,

pelo que percebo a ruína do Internacional não está no local nem na falta de apoio popular. Está nos atletas que continuam, através de suas inscrições, dando sobrevida à uma organização moribunda.

Tira os tubos, desliga os aparelhos, corta o remédio. O que sobrar é a verdade. O que se for era um sonho que virou realidade e acabou em pesadelo.

Long Distance na Bagagem disse...

Bessa, exceto em Jurerê que respira triathlon, como o Guilherme Gardelin falou, o restante da cidade não, todos reclamam do Ironman por causa de 1 dia parado no transito, mas essas mesmas pessoas passam o ano todo presas ao transito porque não procuram alternativa para ir ao trabalho. Agora, se vc falar que o Ironman vai mudar de cidade por falta de apoio da população, a coisa muda, porque muitos dos que reclamam se beneficiam quando uma prova é feita na sua cidade.
Em Santos acredito ser igual, a população apoiava porque eram poucas provas por ano, agora que o triathlon ta na moda e tem muito mais provas a população começa a ficar contra porque está perdendo o seu espaço, mas não querem que a prova acabe, apenas que seja do seu jeito...

Rodrigo disse...

Os triatletas são um grupo diversificado, crítico e prezam pela segurança e qualidade.
Pela falta de opções acabamos sofrendo uma certa "necessidade" de participar demalguns eventos ruins. A logística deter tipo de prova é bem mais complexa do que uma prova de corrida de 5km por exemplo, mas é viável e vários países e cidades conseguem, visto o Panamá que faz de um triathlon um evento nacional que beneficia a população.
Acho que acessórias, atletas líderes, atletas profissionais deveriam liderar um movimento para fortaler o esporte como um todo, fortaler boas provas e melhorar as nao tão boas, organizar um calendário e etc.
Difícil imaginar que as principais provas não estão sob o controle das federações e sim de empresas particulares.
Se somos críticos para escolher a acessória, escolher a bike, escolher os suplementos e etc... Podemos ser mais seletivos também onde investimos nosso dinheiro com referencia as provas e exigir que elas atendam as nossas necessidades, pois sem nós atletas elas não tem porque existir.

Daniel disse...

Na boa Professor Bessa, vou postar aqui um comentário bem....homossexual...ia falar outra coisa, mas nesses tempos é melhor ser o mais politicamente correto possível.

Li de novo. Me deu um nó na garganta. Sua comparação com o Cinema Paradiso foi genial. Expressou a agonia, a tristeza, a nostalgia. A mesma areia, o mesmo asfalto que já viu Mark Allen, Macca, Leandro Macedo, foi profanado.

Não acho que seja suficiente simplesmente boicotar. ë preciso união. É preciso que vire oficial, uma entidade de triatletas que defendam nossos direitos de consumidor.

Você foi brilhante nesse texto.

Joel dos Santos Leitão disse...

Vagner, bonito isso!
"As coisas morrem dentro da gente antes de morrerem por fora."
Putz! É uma frase pra ficar olhando pro horizonte e refletir.
Mudando de assunto, preciso rever "Cinema Paradiso".
E a próxima pizza, quando vai rolar?
Abraços,
Joel