Escrever uma história na qual somos os próprios personagens aumenta bem a chance de um texto cheio de cascas de banana.
Não se trata apenas de falar sobre a distância entre o que ocorre e a nossa percepção - problema maior é o quão nossas lembranças podem ser seletivas, pois já sabemos que o eu que passou por uma experiência não é o mesmo que reflete e escreve sobre ela.
Para mim, nesse Ironman a coisa mais marcante foi a experiência da dor. Mas uma dor que não pode ser descrita como aguda, tal como um corte profundo, ou um incomodo insistente e constante.
Apenas uma dor.
Daria ibope se escrevesse que se trata de uma dor redentora, aquela que antecede a uma grande realização pessoal e purifica nossa alma depois de um grande esforço e uma brutal demonstração de força de vontade.
Mas não foi assim que aconteceu comigo. Não me orgulho disso.
Gostaria de terminar um Iron rindo, vibrando de punhos fechados ou exausto chorando por outras emoções.
Acho que muitos de nós convivemos com uma "angústia de realização" que suplanta o orgulho de superar a dor - quando o esforço cessa, a primeira sensação não é de alívio físico, mas uma inquietação: "poderia ter sido melhor".
Minha prova em 2014 tinha uma meta - alcançar o pórtico à luz do dia.
Nas semanas que antecederam a prova, especificamente no período de polimento, minha ânsia de antecipar mentalmente as dificuldades me fez sofrer por antecipação - coisa que ninguém comenta sobre as ambiguidades do processo de "mentalização".
Eu estava com medo de uma natação problemática. De longe, nadar é o que me deixa mais desconfortável dada a necessidade de combinar esforço, respiração e uma certa paciência para seguir lentamente entre as bóias e a praia. Sei que não vou ficar no mar, mas nos momentos mais críticos padeço do esforço cego e da sensação de afogamento em razão da respiração descoordenada.
Nos dias que antecederam a prova, entretanto, trocando figurinhas com a Ana Oliva, ganhei dicas que tiveram um ótimo encaixe mental: se situe no seu grupo, não estresse com a pancadaria e foque nos seus movimentos.
Na largada, alinhei meus pensamentos, não deixei que o confronto com outros nadadores me irritasse e parei de pensar o quão longe estavam as bóias. Eu simplesmente aceitei as coisas como elas eram e pensei apenas no que estava fazendo.
Outra coisa importante foi ter nadado com o chamado "nado manco" ou "braçada esticada" com a respiração dois por um, tal como o Vinnie Santana tinha exposto em um video do MundoTri.
Conversando com o Rodrigo sobre o assunto dois meses antes da prova, ele achava que estávamos em cima da hora para uma mudança de técnica - mas eu já tinha feito uns ensaios na piscina e, quando entrei no mar, foi um ato totalmente involuntário.
Percebi que tinha conseguido conciliar uma técnica de natação e uma estratégia mental que me levava para frente de forma consistente. A respiração pausada e o foco nos movimentos evitavam que me sentisse afogado e ansioso com a passagem do tempo.
Sai da água para 1:08 - dez minutos mais rápido que meu último IM. Depois fiquei sabendo que nadamos mais de 3.800 metros e achei o resultado ainda melhor.
Para a etapa do pedal, esperava um ótimo desempenho tirando por média os treinos de base na Ciclovia do Rio Pinheiros e no Riacho Grande. Vindo de um tempo de 5:22 no IM do Texas no ano passado, minha expectativa era um pedal dez minutos mais rápido.
Pedalei com cadência baixa como gosto e me senti forte nos primeiros 90k, fazendo algo próximo a 36km/hora. Apostava em uma primeira volta mais rápida para evitar máximo possível o vento naquela área próxima aos túneis.
No retorno da segunda perna, entretanto, o jogo mudou e as peças no tabuleiro foram rearranjadas bruscamente - as rajadas entraram forte e, creio eu, um pouco mais cedo do que o esperado.
Eu tinha feito a aposta a errada e meu corpo sentiu as consequências imediatamente.
Do ponto de vista mental, também foi uma lástima. Ao invés de me concentrar em cada pedalada, comecei a fazer uma espécie de "mentalização negativa", sofrendo por antecipar os trechos duros pelos quais ainda teria que passar.
A média caía e comecei a pedalar sem ritmo.
Quebrei.
Agora, escrevendo, não dá para não achar graça das coisas que passam pela cabeça naqueles momentos. Você começa pensando "Hoje eu vou para Kona", uma hora depois "Nunca mais faço inscrição para essa porra de prova" e, 45 minutos mais tarde, "Fura agora pneu desgraçado, fura!" ;-)
E ai entramos na história dos pelotões. Vou apenas dar meu depoimento e deixar esse assunto para outra oportunidade se tiver algo novo para dizer. Já falei sobre o assunto em várias situações e a repetição continua dos mesmos argumentos fica com cara de sermão.
E também não vou citar nomes, pois as pessoas que montaram esse circo estão expondo de forma pública suas visceras umas às outras.
Primeiro, vi três pelotões grandes, fortes e organizados. Várias pessoas encaixadas dentro deles que juntas abriam vantagem com uma velocidade surreal, principalmente quando os apanhava no contra-fluxo vindo em direção oposta a minha. Era um povo que estava fazendo outra prova.
Infelizmente, muitos conhecidos e conhecidas.
Em seguida, havia pelotões de atletas mais fracos e oportunistas que foram se agrupando aleatoriamente. Eram bastante desorganizados, inconstantes e colocavam outros triatletas para dentro por gravidade.
Fui engolido por um deles e tive que fazer força para sair, mas quando fui beber água em um retorno chegaram novamente - até que, um pouco adiante, a moto que levava o fiscal parou bem na frente enquanto outra vinha em linha reta contra o pelote.
Presencie um strike memorável e, caso estivesse lá dentro, não teria conseguido parar e sair ileso.
E, finalmente, menos visíveis e comentados, foram os pequenos agrupamentos com quatro ou cinco pessoas que entravam nos trechos mais estreitos marcados pelos cones e pedalavam juntos o tempo todo.
Eram menos eficientes que os grandes e fortes, mas mais eficazes se comparados com esses que acabei de descrever. Em teoria, funcionam bem para triatletas medianos no pedal façam tempos muito bons. Agrupavam amigos e pessoas de uma mesma assessoria - o que não significa, vamos deixar bem claro, que todos que estavam com o mesmo uniforme estavam com jogo de equipe.
Os pelotes atrapalham quem está com a cara do vento em pelo menos duas situações: quando somos obrigados a diminuir o ritmo para passarem ou, ao contrário, quando fazemos um esforço maior que o programado para deixá-los para trás.
Só que os pelotes explicam muito pouca coisa do meu desempenho.
A verdade é que estava perdendo o jogo para mim mesmo.
Percebi que não chegaria antes do anoitecer. Tive que repensar a prova que queria fazer e, mais importante, a prova que tinha condições de fazer.
Naquela condição, um tempo abaixo de onze horas seria uma vitória e tanto, embora estivesse desconfiado que correr depois uma maratona seria quase impossível. Os dois Irons do Texas me vieram a mente como um pesadelo porque neles me faltou força para correr.
No retorno de Canasvieiras o vento arrefeceu e consegui recolocar um pouco a casa em ordem. Fechei para 5:28 e uma cadência média de 62 rpms/minuto.
Na transição me sentei por dois minutos, não senti nenhum sinal de esgotamento e minhas pernas estavam soltas. Comi dois pedaços de bolo com refrigerante e estava na prova novamente.
Fiz os primeiros 21k quilômetros na parte mais difícil da corrida me sentindo forte e com um pace excelente, pouco abaixo de 5 minutos para cada quilômetro.
Gostei demais do novo percurso da maratona. Não sei se é impressão minha, mas ficou menos travado e as subidas e descidas longas são ótimas para um bom ritmo.
Mas a partir do quilômetro 30 comecei a perceber as dificuldades e, faltando apenas seis para terminar, me vi encrencado.
Perdi a passada da corrida e meu joelho começou a doer como nunca tinha doido, sendo que ficava pior quando eu andava nos postos e retomava a corrida. Tentei novamente me concentrar na respiração pausada, acertar o pace de forma decente e não pensar na distância.
Mas a verdade é que eu não tinha trocados para pagar o restante da prova. Correr fraco se tornou algo para a qual eu precisava fazer um esforço tremendo e uma vontade avassaladora de parar não saia da minha cabeça.
E nesse momento lembro perfeitamente do apoio das pessoas que estavam dentro da prova fazendo, elas próprias, uma bela corrida, mas sempre doando uma palavra de incentivo todas as vezes que nos cruzávamos. Cito de cabeça o Guto e o Julio em meio a vários outros que não conseguia identificar porque não tirava os olhos do chão.
Fora da prova, não posso deixar de mencionar o Mauricio Letzow e o Orlando Castilho, que perceberam aquele momento critico e me apoiaram sempre que nos encontrávamos no percurso. Com o meu coach dentro da prova, fiquei amparado por essas duas figuras sensacionais. Ambos agiram sem olhar a cor da minha camisa e por um estilo de camaradagem que nos lembram valores cada vez mais esquecidos.
Nesse sentido, pensando alto, não deixa de ser curioso com o IM pode ser um evento cheio de contradições. Em certos momentos você está de frente com o tipo mais cru de deslealdade e, em outros, vê gestos de companheirismo e solidariedade que calam fundo na alma da gente.
Já indo para a parte final, algumas pessoas apontavam "apenas" dois quilômetros mas, ainda assim, a vontade de parar era como uma bigorna na minha cabeça. Meu estoque de vontade não existia mais.
Nosso cérebro não tem odômetro e não faz diferença para ele se estamos a 20 quilômetros ou 20 metros do portal. Olhava as luzes que iluminavam a arquibancada ao lado pórtico e pareciam inalcansáveis como as estrelas.
Totalmente atordoado, sem expressar nenhum tipo de comemoração, fechei a maratona para quatro horas e a prova em 10:49.
Um pouco aliviado pelo resultado abaixo de onze horas, mas frustrado por ter feito uma prova tentando amenizar os danos colaterais de uma estratégia equivocada.
Mas é assim. O Ironman é uma prova cheia de armadilhas e cobra muito caro pelos erros.
As vezes fico pensando que, se há toda uma sabedoria convencional disponível para quem vai para sua estréia em um IM, dai para cima o desamparo é geral.
Não importa o número de Irons que uma pessoa tenha, a experiência da prova não se acumula facilmente - quando dizemos que "cada Iron é um Iron", implicitamente assumimos que os eventos passados fornecem um parâmetro fraco para olhar o futuro - corrigimos os erros de um IM para descobrirmos outros no próximo.
Acertamos nossa nutrição para descobrir que temos que ajustar nosso bike fit. Ajustado o bike fit, melhoramos nosso pedal para, em seguida, percebemos que isso de nada adianta se não conseguirmos correr depois de um esforço maior na bike - e quando tudo se encaixa e nos tornamos mais rápidos, temos que mudar novamente a nutrição....
Uma espiral de ajustes que lembra o dilema de resolver um quebra cabeça tridimensional chamado Cubo de Rubik - também conhecido como "cubo mágico". Você tem que montar seis faces alinhando simultâneamente todas as cores de uma vez só.
São 43 252 003 274 489 856 000 combinações possíveis.
Mas um Ironman não é um jogo de encaixe com uma solução matemática e não há nele nenhum algoritmo que nos aponte a melhor maneira de realizá-lo.
Ele é o resultado de um balanço confuso entre perícia e acaso. Um jogo imperfeito para um cara que não tem como vencer todas as vezes e que busca apenas um dia raro, inesquecível e verdadeiro.
E o sol no horizonte.
E o sol no horizonte.