quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A falta e a barreira

Caso não esteja eu enganado, pela primeira vez uma amadora brasileira foi pega no exame antidoping em uma prova de Ironman - não por conta das entidades tupiniquins, já que essas são mais eficientes em organizar eventos no que estes têm em comum com festas de casamento do que com uma competição limpa.

As dificuldades para dar conta dos problemas de vácuo todos nós já sabemos. A distorção de resultados é flagrante e a cultura é tão enviesada que, recentemente, um atleta em entrevista ao MundoTri admitiu ter alcançado a vaga para Kona pedalando em bloco e nada aconteceu.

E ele não é o primeiro.

Mas sobre o doping nós não temos sequer idéia. Os resultados das provas de Ironman veem melhorando horrores em cada faixa etária e evoluções muito rápidas sempre são suspeitas.

Só que colocar o guiso no gato ninguém foi capaz de colocar.

O que assusta no caso é que não estamos falando de lança-perfume, mas EPO - uma droga que parecia acessível apenas para competidores de alto nível mas, pelo que se vê, não são apenas os melhores equipamentos que profissionais e amadores compartilham.

Obviamente que os comentários nas redes sociais foram, em sua esmagadora maioria, de repúdio com tonalidades pesadas.

As redes sociais são como várias bocas grandes com muitos dentes -  e as vezes uma delas morde a mão do dono.

Se você quer aparecer na capa de revista, dar entrevistas em sites, angariar patrocínios com a imagem e aparecer no site do MundoTri diplomado para ir para Kona, não vale reclamar da exposição quando o ambiente ficar inóspito.

Exposição tem um custo e é ingenuidade achar que lá só tem apupos da "galera".

De outro lado, os que resolveram amenizar a situação montaram uma barreira com um arsenal de arremedos de inspiração bíblica: "vamos condenar o pecado, não o pecador", "não julgues para não seres julgado" e, se me lembro bem, "atire a primeira pedra quem nunca errou".

Acho curioso, pois no caso do Ivan Albano a atitude dos amigos foi semelhante: "Ele lá em cima colocou isso no caminho para servir de aprendizado" ou, em chave mais atual, #deuscomanda.

O argumento é de uma estultice que não vale ser rebatido com muita tinta.

O uso de exemplos arbitrários põe em pé de igualdade situações cujo grau de gravidade não guardam relação.

Quando tá todo mundo vendo um sujeito na roda do outro em um video, é costume aparecer alguém e disparar " Por acaso ninguém aqui já tomou multa de trânsito? Ninguém?".

Dói, mas é clássica.

Já a repreensão moral é recurso de retórica.

Ela muda o foco e inverte papéis; "opinião" vira "julgamento" e você nem precisa ter feito nada para ser suspeito - basta que um dia possa fazê-lo.

Como pecador nato, não tenho o que esconder.

Acho que todos os dias cometo pelo menos cinco erros entre a porta do apartamento e a saída do elevador do meu prédio. Até o metrô, outros tantos. Tenho multa de trânsito, já roubei o café na conta do restaurante e acho que hoje entrei no trabalho sem dizer "bom dia" para uma chata do administrativo.

Mas eu não tomo doping.

Mesmo pessoas que mal conseguem fazer o jogo da velha entendem de bate pronto que esse arrazoado de clichês mal disfarça nosso viés de julgamento: somos perfeitamente capazes da critica genérica, mas quando amigos ou conhecidos cruzam a linha, as coisas são um tanto mais nebulosas.

Quando o tal erro pega o interesse de alguém, os mesmos que dizem com ar de santo "não julgues" não pensam duas vezes antes de sair atirando paus, pedras, gato, cachorro, sofá de mola e tudo que estiver no caminho na cabeça do "pecador".

Outros, que são muito contundentes contra a corrupção e acham justo ver jovens amarrados em pau de arara no meio da rua por conta de pequenos furtos, ficam pianinho quando a coisa é com o(a) vizinho(a) que mora ao lado ou está na mesma assessoria.

Mas o que é angustiante é a forma como encerramos o assunto: uma carta.

Trata-se de uma resposta formal com trechos que nos fazem desconfiar da sinceridade do seu conteúdo.

"Fiz tudo sozinha....".

Pelo que sei, EPO só pode ser prescrita por médicos e em casos de tratamentos de doenças, como aids, câncer e insuficiência renal.

Ninguém vai perguntar como ela conseguiu acesso a essa substância? Se algum médico forneceu a receita? Se sim, ele ministrou?

Se não, quem forneceu?

Esse fornecedor tem relação com outros triatletas ou ciclistas?

Tyler Hamilton seria irrelevante se tivesse apenas escrito uma carta de desculpas sobre o doping no ciclismo. Ele não apenas forneceu as pistas para que a chamada  "Era Lance" desmoronasse, como ainda se tornou uma figura importante para a formulação de propostas por um ciclismo mais limpo.

Nesse processo, conseguiu aquilo que um Tour não seria capaz de dar naquele tempo - respeito, credibilidade e, sobretudo, paz.


Um comentário:

Luis Fernando Oliveira disse...

Lendo a carta, minha primeira reação foi cínica ("putz, de novo, mais um desses pedidos de desculpas feitos com a mão fechada"). Mas quando eu li sobre os problemas com TOC, confesso que fiquei simpático à explicação, em uma reação totalmente não racional. Que passou (e fica cada vez menor, quanto mais eu penso no assunto e voje que não faz nenhum sentido).

Não sei as razões e elas pouco me importam. Mas na minha modestíssima opinião (que parece ser parecida com a sua), volta pras competições só se disser como fez (quem deu, onde teu, etc, etc, etc).